quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Desvendando a concordata, parte I: título e disposições iniciais

A concordata assinada no ano passado entre o Brasil e a Sé de Roma tem 20 artigos que encerram uma grande variedade de disposições com graus bastante variados de desconformidade com a lei brasileira. Para ajudar em sua interpretação, disporemos neste espaço de algumas críticas aos pontos mais importantes. Embora longe de serem exaustivas, esperamos que elas ajudem a entender as consequências do acordo. Começaremos aqui tratando do título e das disposições iniciais.

O auto-instituído nome oficial da concordata é "Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil". Como já apontamos anteriormente nos Fatos e mitos sobre a concordata, todas as instituições religiosas presentes no país, incluindo a Igreja Católica Apostólica Romana (pois há outras Igrejas Católicas, como a Igreja Católica Brasileira) já possuem um estatuto jurídico vigente e eficaz em nossa legislação, que é suficiente para o seu funcionamento pleno.

Dos vinte artigos do documento, apenas o caput de um deles (o art. 3o) realmente dispõe sobre o estatuto jurídico da Igreja. Os 95% restantes dispõem de outros temas, de maneira que o título oficial é apenas um nome de fantasia. O próprio texto se aponta nesse quesito como desnecessário, pois institui que "A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica" -- e se reafirma, é porque ela já está instituída. No entanto, leis não são como instruções verbais que precisem ser "reafirmadas": uma vez promulgadas, permanecem válidas em sua íntegra até disposição legal em contrário.

O nome do acordo, portanto, não corresponde à vasta maioria dos assuntos de que ele trata. Mas ele foi e é extremamente eficaz em termos de relações públicas, já que grande parte dos meios de comunicação se baseou no discurso oficial para relatar a notícia. No melhor estilo de novilíngua, a introdução desse nome teve grande sucesso em estabelecer a percepção do seu conteúdo para aqueles que não o leram com atenção.

O corpo do documento inicia com sete de considerações. Comecemos pelas últimas duas, que estabelecem

Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade religiosa;
Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos;

É claro que não há nada a obstar a elas, a não ser o fato de que são desmentidas por todas as demais considerações. Como acontece em muitos outros trechos da concordata, os poucos trechos perfeitamente lícitos se minsturam aos demais sem qualquer aviso. Por exemplo, a segunda consideração do preâmbulo afirma:

"Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa humana;"
É fato: dos nossos quinhentos anos de existência, cerca de quatrocentos se deram com íntima relação entre a Igreja Católica e a autoridade civil, tanto no tempo de colônia quanto no império. No entanto, essa dependência mútua se deu sempre sob a contrapartida não apenas da confessionalidade do Estado: ela implicou a ausência de liberdade religiosa e até perseguição religiosa. Durante o império, por exemplo, só católicos podiam votar e ser votados; como os cemitérios eram religiosos, quem não era católico podia ter seu sepultamento negado, como ocorreu no célebre caso de Júlio Frank.

Enquanto as relações entre Estado e Igreja Católica foram íntimas, não houve liberdade religiosa. Assim, 80% das relações históricas assinaladas na concordata assentaram amplos privilégios à Igreja Católica, em detrimento de todos os demais cultos. É em homenagem a essa época que a presente concordata foi escrita, e é a ela que seus termos desejam nos remeter novamente.

Não por acaso, a última consideração do preâmbulo afirma que os signatários estão
"Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes"
Ora, mas essas relações só existiram formalmente durante a colônia e o império, o tempo de perseguição religiosa legalmente instituída no país contra todos os cidadãos que não fossem católicos. A República começou instituindo concomitantemente, em seu decreto 119-A, a liberdade religiosa plena e a separação completa entre Estado e Igreja. Desde então, cabe ao Estado apenas assegurar a liberdade e a igualdade religiosas.

Até o momento, inexistem disposições legais válidas apontando relações do Estado brasileiro com qualquer credo. Mesmo a concordata de 1989, que estabelece capelanias militares exclusivamente católicas, não foi ratificada pelo Congresso Nacional como requer a Constituição Federal, de maneira que é juridicamente nula. Qualquer "relação mútua" fica submetida ao interesse público, que jamais pode passar pelos interesses de qualquer confissão em particular, como é o caso desta concordata.

E há coisas ainda mais graves. A primeira e a quarta considerações citam o Código de Direito Canônico:

"Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito Canônico;"
"Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;"
Que a Sé de Roma se baseie no Código Canônico (leia versões oficiais em outras línguas aqui) não é surpresa alguma. No entanto, não se pode deixar de apontar que esse código contém injunções que, embora não sejam tão virulentas como as presentes em muitos textos de autoridade da Igreja Católica (por exemplo, o IV Concílio de Latrão), ainda são bastante preocupantes. Afinal de contas, é nesse código que se basearão as interpretações dadas à concordata (cf. art. 19), assim como as adições e convênios a serem produzidos com a CNBB (cf. art. 18) .

O Código de Direito Canônico é um documento longo e complexo, com quase dois mil artigos, e não cabe aqui uma análise geral. Destacaremos apenas alguns pontos que merecem atenção, como é o caso do cânon 1398:

"Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae."
Embora ele não seja novo, a simples aplicação desse artigo, cujos termos são bastante simples e diretos, provocou enorme comoção pública no mundo inteiro, em março deste ano, quando foi aplicado a todos os envolvidos no aborto realizado em uma menina de 9 anos de Alagoinha (PE), grávida de gêmeos após ter sido estuprada pelo padrasto, que não sofreu nenhuma sanção eclesiástica. Devemo-nos perguntar se é esse o tipo de determinação que desejamos que esteja associada à legislação nacional.

Para aqueles que preferem apontar que a atitude da Igreja pode não ser ética ou compassiva, mas não é ilegal, deve-se apontar o cânon 868, que estabelece o seguinte:

"§ 1. Para que uma criança seja licitamente batizada, é necessário que:
1° - os pais, ou ao menos um deles ou quem legitimamente faz as suas vezes, consintam;"

Esse cânon dá como legítimo o batismo de uma criança contra a vontade de um dos pais, uma ação no mínimo controversa cuja legalidade caberia a um tribunal brasileiro decidir, não a um tribunal eclesiástico em solo estrangeiro. Mas o mesmo artigo tem um dispositivo muito mais grave:

§ 2. Em perigo de morte, a criança filha de pais católicos, e mesmo não-católicos, é licitamente batizada mesmo contra a vontade dos pais.
Aqui fica perfeitamente explícito o espírito do qual é imbuído o Código Canônico, e que portanto também rege a Concordata: trata-se não apenas da doutrinação católica em desrespeito pleno a qualquer outro grupo ou qualquer entendimento de diversidade ou pluralidade. O que se tem aqui é a violação flagrante dos direitos individuais de crianças, assim como a violação dos direitos dos seus pais. Cânones como esse contradizem inequivocamente os princípios mais básicos do Estatuto da Criança e do Adolescente, e também de nossa constituição, no que tange à liberdade religiosa e a liberdade de consciência e crença. Esse não pode ser o tipo de legislação que rege as partes com quem nosso país assina tratados, ainda mais se ela determinará a interpretação e as adições a esse tratado.

O mesmo ímpeto aparece em outros artigos, como o Cân. 870:

A criança exposta [órfã] ou achada, seja batizada, a não ser que, após cuidadosa investigação, conste de seu batismo.
Nota-se que a única preocupação aqui é a de não rebatizar a criança, o que é proibido por outro artigo do cânon. Não se vê qualquer preocupação em procurar os pais, a existência de outros membros da família, ou mesmo considerar os desejos da criança (assim considerada pelo Código Canônico até os dezoito anos): se ela não tem quem zele por ela, será batizada a despeito de qualquer outra coisa. De fato, há inúmeros relatos de batismos secretos de crianças e até de adultos batizados contra sua vontade na Índia, denunciados por ativistas de vários credos.

A aplicação do cânon 868 foi o pivô do famoso caso do sequestro de Edgardo Mortara. Mortara era um garoto judeu de sete anos que foi batizado por sua babá, uma menina católica de 14 anos, sob a alegação de que ele estava doente e ela temia que ele não sobrevivesse. Então, durante a noite de 23 de junho de 1858, a polícia chegou à casa dos Mortara em Bolonha, que na época pertencia aos estados papais -- sob a autoridade civil dos papas, e prevalência do Código Canônico. Segundo o Código Canônico, o batismo fazia de Edgardo um católico, e a lei proibia que um cristão fosse criado por não-cristãos, mesmo que fossem seus pais.

Mortara foi tomado de sua família, que não teve permissão para vê-lo por várias semanas; quando finalmente isso lhes foi gentilmente permitido, eles não podiam ficar a sós com seu próprio filho. A Igreja Católica afirmou que os Mortara podiam reavê-lo caso se convertessem ao catolicismo, o que eles recusaram. Apesar de diversos apelos internacionais, o papa Pio IX, conhecido por seu anti-semitismo, não cedeu. Edgardo acabou por se ordenar padre, e chegou a escrever a sua mãe nos seguintes termos: "eu sou batizado. Meu Pai é o Papa, eu gostaria de viver com minha família se ela se tornasse cristã, e rezo para que isso aconteça."

É verdade que os fatos são do século retrasado, mas as verdades promulgadas pela Igreja Católica se pretendem eternas e imutáveis. Mais do que isso, o importante é que o sequestro do rapaz foi causado por artigos do Código Canônico que continuam em vigor ainda hoje -- o mesmo código que rege uma das partes da concordata. Nos termos do próprio acordo:

"Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico"

Ou seja: é em determinações como os cânons 868 e 870, entre tantos outros, que se baseia uma das partes do acordo. É com base nesses cânons que se determinará como deverão ser interpretados e como poderão ser expandidos os termos da concordata. E com base neles serão decididas as sentenças sobre matéria matrimonial que o Estado brasileiro será obrigado a homologar (cf. art.12), tema que será detalhado em outros tópicos.

Como se vê, desde seus termos mais fundamentais, a concordata já se orienta por disposições anti-democráticas e inconstitucionais. Seus princípios denunciam profundo desrespeito à liberdade e à pluralidade religiosas, o que também se reflete nos termos dos artigos do acordo, como se verá nos próximos textos.

2 comentários:

Maico disse...

Forçar batismos é uma vergonha! E isso é só uma pequena parte de como as coisas podem ficar.

Obrigado, Daniel Sottomaior, por trazer à luz esse acordo tão obscuro.

Luz Editora disse...

Daniel:

Sua posição firme e clara é louvável. Devemos ser assertivos diante das situações tendentes a restringir o Estado Laico e, consequentemente a Liberdade Religiosa.

Parabéns!

Samuel Luz